Por Toninho Carrasqueira
Ensaio elaborado especialmente para o projeto Músicos do Brasil: Uma Enciclopédia,
patrocinado pela Petrobras através da Lei Rouanet
"…quando eu morrer (...), não quero flores, nem coroa de espinho, quero ouvir choro de flauta, violão e cavaquinho…"
Noel Rosa
As flautas têm acompanhado o homem desde o princípio de sua história.
Feito de ossos, madeiras, metais, todos os povos têm se comunicado através deste que é, no dizer do compositor francês André Jolivet, o instrumento musical por excelência, pois é animado pelo sopro, emanação profunda do homem, e carrega em seus sons aquilo que nos é, ao mesmo tempo, visceral e cósmico.
Também os homens do continente americano vêm, ao longo dos tempos, se expressando ao som de suas Quenas, Sampoñas, Pífanos de bambu, Ocarinas de argila, bem como de suas modernas flautas de ouro e prata, que são herdeiras, descendentes de todas as primeiras flautas. Seu universo cultural, extremamente rico, é, na imagem do prof. Alfredo Bosi, "um coro onde as vozes da Europa, da África e da Ásia se fundem, ora harmônica, ora estridentemente, com os cantos, ainda não abafados dos povos pré-colombianos". O vigor de sua arte impressiona a todos os que têm o privilégio de com ela travar conhecimento.
As flautas estão presentes desde tempos imemoriais em praticamente todas as culturas do planeta, incluindo as dos diferentes povos indígenas, africanos e europeus, matrizes recentes do atual povo brasileiro.
Diferentes mitologias se referem a deuses flautistas, Pan, Krishna, Kokopeli… divindades sedutoras, que têm o dom de transportar as almas com o som de suas flautas.
No Brasil... terra boa e gostosa ... terra de grandes músicos, e de excelentes flautistas, de norte ao sul do país, vemos virtuoses, seresteiros, chorões, "jazzistas", "concertistas", roqueiros, sambistas, mestres e aprendizes desse instrumento presente, desde os mais remotos de nossa história, na música de nossa gente. Muitos desses artistas permanecem desconhecidos do grande público, outros têm condições de aparecer mais e mostrar sua arte, mas o fato é que sempre houve grandes flautistas e, sobretudo, muito atuantes na história da música brasileira.
Joaquim Callado, Viriato Figueira, Mathieu André Reichert, Pattápio Silva, Pedro de Assis, Duque Estrada Meyer, Pixinguinha, Agenor Bens, Ary Ferreira, Benedito Lacerda, Vicente de Lima, Moacir Licerra, Lenir Siqueira, Alferio Mignone, João Dias Carrasqueira, Manezinho da Flauta, Bide, Dante Santoro, Eugênio Martins, Copinha, Carlos Poyares, Luiz Fernando Sieciechowicz - o “China” -, Simone Castrillon, entre os que que já se foram, e Andrea, Beth e Odette Ernest Dias, Altamiro Carrilho, Hermeto Pascoal, Celso Woltzenlogel, Rogério Wolf, Lucas Robatto, Marcelo Bonfim, Renato Axelrud, Ricardo Kanji, Marcelo Barboza, Maurício Freire, Toninho Guimarães, Artur Andrés, Artur Elias, Beatriz Magalhães, Edson Beltrame, Heriberto Porto, Cassia Carrascoza, Fernando Pacífico, Daniel Allain, Franklin da Flauta, Marcelo Bernardes, Mauro Senise, Ariadne Paixão, Mauro Rodrigues, Marcos Kiehl, Dirceu Leite, Léa Freire, Norton Morozowicz, Teco Cardoso, Tota Portela, Sérgio Barrenechea, Nivaldo de Souza, Alexandre Johnson, Eduardo Neves, Laura Rónai, Tyrone Mandelli e Rodrigo Y Castro, entre outros bons, são algumas das estrelas desta verdadeira constelação.
Pois tenho o privilégio de ser filho de um dos maiores mestres da história da flauta no Brasil, João Dias Carrasqueira, o Canarinho da Lapa, que sintetizava como poucos as duas principais vertentes da moderna flauta brasileira; a nobre flauta concertista, das orquestras sinfônicas, da música de câmara, dos salões, teatros e salas de concerto; e a não menos nobre flauta popular, buliçosa, irreverente, cheia da ginga e malícia das ruas, serestas, bailes e botequins.
Inspirado na magia de sua flauta, que me fez ser também flautista, gravei, em 1996, quando me desliguei da Orquestra Jazz-Sinfônica do Estado de São Paulo, um CD com músicas de Pattápio Silva e de Pixinguinha. Por essa época, a música de Pattápio andava muito esquecida e a de Pixinguinha pouco tocava no rádio. Nesse disco eu pretendia, também, através da música destes dois grandes mestres da flauta brasileira, render uma homenagem à história da flauta no Brasil que, apesar de riquíssima, era, porém, desconhecida até pela maioria de nossos estudantes de flauta.
Hoje, felizmente, graças a vários trabalhos, esse desconhecimento pela parte de nossos estudantes é menor. Não obstante, fato gravíssimo, muitos brasileiros nunca viram uma flauta, ou um clarinete, por culpa das limitações da programação das televisões e rádios brasileiras, ainda que haja raras exceções.
Alguns anos depois, mais precisamente em 2001, a convite do violonista e compositor Maurício Carrilho, tive a felicidade de participar, ao lado de grandes músicos, da gravação de uma série de CDs que fazem parte de uma coleção chamada "Princípios do Choro".
Fruto da pesquisa de Maurício e de sua mulher, a violonista Anna Paes, essa preciosa coleção revela um momento que era, até então, um verdadeiro "elo perdido" da história da música brasileira. Aí foi minha vez de me surpreender com o grande número de flautistas, em sua maioria também compositores, e com a enorme popularidade da flauta no Rio de Janeiro na segunda metade do século dezenove. Esta revelação atiçou ainda mais minha curiosidade sobre a história da flauta no Brasil.
De onde surgiram tantos flautistas, como tudo começou?
Ary Vasconcelos , em seu livro Raízes da Música Popular Brasileira, diz:
"O relógio da música popular brasileira dispara, teoricamente, numa terça-feira, dia 22 de abril de 1500. (...)
(…) Quando os portugueses por aqui chegaram, a música foi parte importantíssima no processo de colonização. Os jesuítas trouxeram em sua bagagem a tradição musical européia, que iria resultar no sistema tonal. (…)
(…) Tudo teria sido certamente bem mais difícil para os padres se os índios fossem menos sensíveis à música. Por sorte do jesuitas, eles adoravam-na."
O Pe. Simão de Vasconcelos confirma isso : "São afeiçoadíssimos à música; e os que são escolhidos para cantores da Igreja, prezam-se muito do ofício e gastam os dias e as noites em aprender e ensinar outros. Saem destros em todos os instrumentos musicais; charamelas, flautas, trombetas, baixões, cornetas e fagotes: com eles beneficiam em canto de órgão, vésperas, completas, missas, procissões, tão solenes como os portugueses" (in "Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil", Livro Segundo, 2a. ed.)
Não é difícil deduzir que já se tocavam flautas no Brasil mesmo antes da chegada dos portugueses.
Para os povos indígenas a música sempre foi ritual, uma forma de se comunicar com o divino, e as flautas, instrumentos encantatórios, sagrados. Assim é até hoje para as nações que sobreviveram aos massacres promovidos pelos colonizadores.
Eu mesmo já tive o privilégio de ouvir uma dupla de flautistas guaranis, mulheres, com suas flautas de caniços verticais de bambu.
Em algumas nações indígenas, outras flautas, com timbres diferenciados, têm distintas funções, e somente aos homens é permitido tocá-las.
Assim, como vemos, as flautas, no Brasil, estão presentes desde sempre. Fazem parte de nossa história desde o início.
Ary Vasconcelos, ainda em seu Raizes da Música Popular Brasileira declara:
"Imensa é a riqueza instrumental do índio brasileiro, com predominância em duas categorias, percussão e sopro… também nas flautas, - isto é, os instrumentos formados por tubos de taquara, madeira ou osso, abertos em uma ou em ambas as extremidades – os índios se mostram muito criativos. Todas elas são providas de orifícios – seis, no máximo, no Brasil - e podem ser retas ou transversais. O material empregado é o bambu, a madeira, a paxiúba, o osso… a flauta nasal… pode ter o aspecto de flauta comum, reta, ou arredondada, quando formada por dois discos de cabaça, presos por cera. Reunindo duas ou mais cânulas, ou dois e mais tubos, temos as flautas conjugadas, duplas, tríplices e as de Pã ou “syrinx”, desta já tendo sido encontrados exemplares, em diversas tribos brasileiras, de até 25 tubos….
… ao índio brasileiro tudo tem sido negado, até mesmo o direito de viver a sua própria cultura, falar a sua própria língua. Tido por muitos como incapaz, entretanto quanto mais é estudado, mais revela sua verdadeira e forte personalidade, mais se afirma como um criador de talento."
Mas não foram somente os índios os beneficiados com o ensino de música promovido pelos jesuítas. Na fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, a tal requinte chegou esse ensino que os africanos e seus filhos e netos, então escravizados, formavam orquestra e corais, chegando a representar pequenas óperas e a dar conta da parte musical dos ofícios sagrados.
Sabe-se, como cita José Ramos Tinhorão, em sua História da Música Popular no Brasil, que muitos fazendeiros tinham bandas musicais formadas por escravos. Essas bandas encantaram a Família Real portuguesa, quando se trasladou para o Brasil em 1808.
Portanto, está assim explicada a popularidade da flauta no Brasil. Aliás, temos aí uma plausível e possível explicação para a tão propalada musicalidade do povo brasileiro, seu gosto pela música, e como ela se entranhou em nossos genes.
Musicalidade, que a meu ver, está sendo enormemente prejudicada na atualidade e desde algumas décadas, com o enorme poder de influência adquirido pela televisão e pelas rádios. Por causa de um sistema econômico que permite às gravadoras decidir a programação desses meios de comunicação, o repertório musical apresentado ao público é extremamente limitado, que não representa nem 7% da produção musical brasileira contemporânea, segundo tese defendida recentemente na Universidade de São Paulo, pela compositora Sylvia de Lucca. Como se não bastasse, esta programação tem um nível medíocre. A ação dessas radios e TVs, em meu entender, tem um efeito extrememente nefasto, não permitindo que as novas gerações tenham acesso não somente à música de grande qualidade feita pelas gerações anteriores, como à boa música feita por seus contemporâneos.
Feito este parênteses, voltemos à nossa história.
As famosas orquestras mineiras do século dezoito, como as remanescentes Lira Sanjoanense e Orquestra Ribeiro Bastos, de São João Del Rey, contavam com flautistas, certamente, como deduz-se pela orquestração utilizada pelos compositores brasileiros de então, como Lobo de Mesquita e Manuel Dias de Oliveira.
Pode-se dizer que a história moderna da flauta brasileira, começa com Joaquim Antônio da Silva Callado Jr. (1848-1880) embora, como já foi dito, já houvesse muitos flautistas antes dele, incluindo-se aí o próprio imperador Pedro de Alcântara, Dom Pedro I. Outro nome importante, foi Matheus André Reichert (1830/1880), flautista belga que chegou ao Brasil em 1859 para integrar o grupo de virtuoses que o Imperador, D. Pedro II, mandou contratar na Europa.
De Callado até hoje, no choro, nas serestas, nas orquestras de cinema, bandas e orquestras sinfônicas, nos grupos de jazz, rock, ao longo dos tempos e nos diferentes estilos, os flautistas vêm participando de forma muito importante da história da música no Brasil.
Além dos virtuoses já citados, outros criadores, como Tom Jobim, Tim Maia, Egberto Gismonti, que mesmo sem tê-la como instrumento principal, também gostavam gostam de tocá-la. Fazem parte de uma tradição muito rica, na qual cada flautista tem um som diferente, original, de características próprias, assim como o canto do canarinho é diferente do canto do curió e do sabiá laranjeira….
Flautista prodigioso, Callado foi o músico mais popular de seu tempo. Criou o conjunto Choro Carioca, o primeiro com a formação instrumental básica do choro: flauta, dois violões e cavaquinho. Começou a estudar música com o pai e aos oito anos de idade teve, durante pouco tempo, aulas de música com Henrique Alves de Mesquita, antes da viagem do maestro à França. Tornou-se profissional desde cedo tocando peças eruditas e músicas dançantes em bailes e festas familiares. Seus companheiros de choro foram Silveira, Viriato Figueira, Luizinho, Juca Valle e outros.
O primeiro sucesso de Callado foi a polca Querida por Todos, dedicada a sua amiga Chiquinha Gonzaga. Em 1873, Callado apresentou pela primeira vez um lundu como peça de concerto, intitulado Lundu Característico. A polca Cruzes, Minha Prima!, publicada em 1875, também foi um de seus grandes sucessos, chegando a ser citada pelo romancista Lima Barreto em Clara dos Anjos: "Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje se lembram do famoso Callado e das suas polcas, uma das quais, Cruzes, Minha Prima!, é uma lembrança emocionante para os cariocas que estão a roçar pelos setenta". Foi professor de flauta do Imperial Conservatório de Música (cujo prédio hoje abriga o Centro Cultural Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro). Em 1879, recebeu de D. Pedro II a mais alta condecoração do Império: a Ordem da Rosa, como comendador, junto com os demais professores do Conservatório. Em 2002, foi lançada pela gravadora Acari Records uma caixa comemorativa com 5 CDs contendo a obra remanescente de Joaquim Callado (66 músicas), gravada por diversos artistas de choro de todo o Brasil.
A novidade de sua música, que nascia com características brasileiras, traduz uma época, a do Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro, pós-guerra do Paraguai, quando o país passava por profundas transformações sociais e a sociedade se amalgamava, reformulava conceitos, criando uma identidade nova e própria.
Vários escravos voltaram da frente de batalha como heróis, condecorados pela coroa.
Par e passo com seu meio ambiente, com o contexto histórico em que vivia, Callado tornou-se ator dessa história .
Com sua sensibilidade e criatividade contribuiu decisivamente para o nascimento de uma música que traduzisse o gesto, a alma, o jeito daquele povo que nascia. Teve como mestre e contemporâneo, outro grande criador-iniciador desta linguagem musical brasileira, Henrique Alves de Mesquita.
De personalidade cativante, Callado foi um grande virtuose e excelente compositor como atestam suas polcas, valsas e quadrilhas, gravadas nas séries "Princípios do Choro", da gravadora Biscoito Fino, e "Joaquim Callado, o Pai dos Chorões", da Acari Records.
Callado foi contemporâneo de Mathieu André Reichert, virtuose belga, trazido ao Brasil pelo imperador Pedro ll.
Ambos muito atuantes, foram personagens importantes da sociedade carioca. O "Divino" Reichert, como a ele se refere Pedro de Assis, em seu Manual do Flautista, era considerado o maior flautista do mundo. O compositor Carlos Gomes lhe dedicou um lindíssimo solo que integra a ópera Joanna de Flandres. Reichert chegou a viajar por vários estados brasileiros. Era muito admirado. Odette Ernest Dias gravou um lindo disco dedicado a suas composições e escreveu um belo trabalho sobre Reichert
Matheus André Reichert, um flautista belga na corte do Rio de Janeiro.
Considera-se que essas duas grandes figuras – Callado e Reichert -, ambos também compositores, estão na base do que seria uma escola brasileira de flauta, em cujo panteão de mestres irão figurar, mais tarde, Duque Estrada Meyer, Pattápio Silva, Agenor Bens, Pixinguinha, Benedito Lacerda, Ary Ferreira, Moacir Licerra, João Dias Carrasqueira, Odette Ernest Dias, Copinha, Expedito Vianna, Altamiro e Álvaro Carrilho, entre muitos outros menos conhecidos, mas não menos importantes.
Cito, também, Carlos Poyares, substituto de Altamiro no famoso regional do Canhoto, que, além da flauta trasversal na qual era um mestre, tocava maravilhosamente também uma flautinha de folha de flandres, com a qual gravou um lindo disco, "Flauta de lata, som de Prata".
Voltando ao século dezenove, é interessante notar que Callado era um músico genuinamente brasileiro, mulato, popular, enquanto Reichert era um músico europeu, de formação erudita, que se integrou ao Brasil, viajando por vários estados e apaixonando-se por sua gente. Aqui faleceu, em 1880.
Surpreendentemente, para muitos, a arte de Joaquim Callado não lhe ficava a dever nada, tendo sido Callado, como vale a pena enfatizar, o músico brasileiro mais popular de seu tempo.
Um fato que demonstra a força da música de Callado é ter sido ele convidado para ser professor do Conservatório Imperial de Música. Mulato, mestiço, músico popular, portanto certamente objeto do preconceito da classe aristocrática, sua música derrubou barreiras e abriu corações.
Callado e Reichert faleceram em 1880, deixando um grande vazio na vida carioca.
Ary Vasconcelos, em seu livro Carinhoso etc - História e Inventário do choro diz , na pág. 18:
"A primeira geração de chorões floresce nos últimos vinte anos do Império. Compreende os vultos ilustres dos flautistas J. A. S. Callado Jr., Viriato Figueira da Silva, … Jorge, (irmão de Marreco), Juca Kallut, Frederico de Jesus..."
Fato surpreendente para muitos, a flauta, já no Segundo Império, era um instrumento muito popular. Havia na cidade do Rio de Janeiro, então a capital brasileira, dezenas de outros flautistas, citados por Alexandre Gonçalves Pinto, o "Animal" em seu livro O Choro - reminiscências dos chorões antigos, editado em 1936.
Segundo uma pesquisa de Anna Paes, nesta época havia, somente na cidade do Rio de Janeiro, 119 flautistas, 46 deles compositores!
Aqui, faço de novo um parênteses para refletirmos sobre a qualidade musical da cultura popular da cidade do Rio de Janeiro de então e fazermos uma comparação com a atualidade. Quando da gravação dos CDs da coleção "Princípios do Choro", fiquei absolutamente surpreso com a qualidade das composições (valsas, choros, polkas, schotish, maxixes) e, por algumas vezes, durante as gravações, nós, músicos, deixamos escapar algumas lágrimas, tal o poder expressivo dessas músicas. Digo isso porque, com exceção de alguns poucos, como Henrique Alves de Mesquita, Chiquinha Gonzaga e o próprio Callado, os outros compositores não eram músicos profissionais, trabalhavam em outras atividades, como carteiros, escriturários, ferroviários, funcionários diversos, fazendo música apenas nas horas vagas.
Alguns anos mais tarde, seria a vez de Pattápio Silva (1880-1907), outro dos maiores ícones da flauta brasileira, se destacar, vencendo o preconceito racial e conquistando corações e mentes com sua flauta. Foi aluno de Duque Estrada Meyer, no Instituto Nacional de Música, antigo Conservatório Imperial, atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Duque Estrada Meyer, por sua vez, tinha sido discípulo de Callado e o sucedeu como professor na mesma instituição de ensino.
Pattápio, foi o primeiro flautista a ter sua arte gravada em disco, em 1902 e 1903 e, por isso mesmo, teve uma enorme influência em flautistas que não chegaram a ouvi-lo pessoalmente. Foi o caso de meu pai e tios, que ouviam aqueles discos de 78 rotações com verdadeira veneração.
Pattápio foi, ao mesmo tempo, popular e erudito. Aliás, quem foi que disse que uma coisa exclui a outra? Será que foi alguém interessado em dizer que as classes populares são "inferiores", para justificar uma pretensa superioridade e ou dominação econômica? O mesmo e odioso argumento usado pelos países colonizadores e escravagistas?
A sonoridade da flauta de Pattápio, vibrante, cheia de vida, fez escola. Apesar da precariedade do sistema de gravação, então bastante rudimentar, percebe-se, ouvindo seus discos, o uso de um belo "vibrato", técnica expressiva que, na época, ainda não era dominada por todos os flautistas, mesmo na Europa, como podemos deduzir do texto referente à interpretação da famosa peça "Minueto e Dança dos Espíritos Bem-Aventurados", de C.W. Gluck, no célebre método francês, escrito pelos professores do Conservatório de Paris, Paul Taffanell e Phillippe Gaubert.
Pattápio, como muitos de sua geração, faleceu muito cedo, com apenas 26 anos, após encantar platéias dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. Rápido como um cometa, iluminando o céu da música no Brasil, não teve tempo para realizar o sonho de mostrar sua arte na Europa, mas deixou uma marca indelével, tornando-se um dos grandes mitos da história da flauta brasileira.
É interessante notar que, como vimos, desde muito tempo a flauta brasileira é popular e erudita. Assim, no que diz respeito aos flautistas, esta tão propalada barreira nunca existiu. E continua não existindo. Isso fica claro na arte flautística de Antônio Rocha, jovem virtuose e já mestre de banda da cidade de Valença, no estado do Rio de Janeiro. Eminente chorão, com evidente infuência de Altamiro Carrilho, de quem conhece todo o repertório, sua sonoridade tem todos os atributos e cores da flauta de concerto, que aprendeu com outro grande flautista brasileiro da atualidade, Marcelo Bonfim, 1º flautista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Obviamente existem também flautistas que se dedicam somente à música barroca, outros somente ao choro, outros ao somente ao jazz. É da natureza essa diversidade.
Em 2001, graças à idéia e grande empenho de minha irmã, a pianista Maria José Carrasqueira, conseguimos com que, após a edição de um álbum de partituras de Pixinguinha, com grande sucesso, pela Editora Vitale, os mesmos editores fizessem a reedição da obra de Pattápio Silva, também excelente compositor, cujas músicas estavam fora de catálogo há muitos anos.
Essa reedição, apoiada pela boa acolhida e repercussão de nosso CD, fez com que se reascendesse o interesse por sua música no Brasil e que ela se tornasse conhecida em outros países. Assim, ela continua sendo tocada e gravada por vários flautistas brasileiros e, hoje, inclusive por flautistas europeus e norte-americanos.
Peço licença para abrir mais um parênteses, para citar a força da música da Pattápio e de Pixinguinha. Uma ocasião, conversando com o grande flautista francês Alain Marion, então professor no Conservatório de Paris, ele me disse :
- "Antônio, preciso lhe confessar uma coisa, tenho uma certa 'bronca' de você.”
- "Não me diga Alain, se foi alguma coisa que eu lhe disse ou algum gesto indelicado de minha parte, por favor, me diga para eu poder me explicar ou me desculpar.”
- "Não, não, você sempre foi muito gentil. Acontece que, lá em casa, apesar de eu ter vários e lindos discos gravados, o preferido de minha mulher é o seu CD, tocando Pattápio e Pixinguinha."
Depois de Pattápio, foi a vez de Alfredo da Rocha Vianna Júnior, mais conhecido como Pixinguinha (1897-1973) se destacar como um músico extraordinário.
Extremamente criativo, flautista exímio, saxofonista, arranjador e compositor inspirado de centenas de choros, sambas e valsas, Pixinguinha se tornaria um dos mais importantes músicos brasileiros de todos os tempos.
Sobre ele, diz Ary Vasconcelos: "Se você tiver que escrever dois livros sobre música brasileira, vai faltar espaço, mas se tiver apenas uma linha, escreva correndo Pixinguinha."
Herdeiro de uma linguagem que já tinha sido criada por mestres da primeira geração do choro, como Callado, Ernesto Nazareth e outros artistas, como Irineu de Almeida (Irineu Batina) e Mário Álvares, que cresceu ouvindo nas reuniões organizadas por seu pai em sua própria casa, Pixinguinha levou essa linguagem a um ápice, inovando-a em vários aspectos como, por exemplo, em relação à técnica flautística:
Escutando a gravação do grupo Os 8 Batutas, ouvimos Pixinguinha, em Urubu Malandro fazendo um "frulato", efeito que imita um gorgeio de pássaro, como o de um canarinho, ou de um curió. Pelo que sei, esse efeito só iria aparecer, escrito, na chamada música clássica, em seu momento de "vanguarda", nos anos de 1960. Fazia também "bendings", usados no jazz, e "glissandos", efeitos absolutamente modernos usados na música "de vanguarda", "contemporânea".
A respeito da força da arte e da influência de Pixinguinha vale a pena ler o que seu amigo, meu mestre João Dias Carrasqueira, escreveu sobre ele:
"Pixinguinha
Embora muito culto no conhecimento da arte da música, Pixinguinha preferiu ser essencialmente um músico popular.
Compositor inspirado, extravasou seu talento em páginas maravilhosas da música de seu povo.
Autor privilegiado de "Carinhoso", "Rosa", "Gargalhada", "Um a Zero", "Naquele Tempo", "Sofres Porque Queres", e centenas de outras pequenas maravilhas em formas e ritmos inesquecíveis .
Quando ele tocava era a "ginga" em pessoa.
Improvisador emérito... moldava, embelezava, dava sempre nova inspiração à música que tocava, sem deturpá-la.
Era o descobridor do novo encanto, da nova surpresa, em cada frase que fosse repetida.
Uma espécie de Anjo feliz, brincando e esparzindo a graça e a beleza em cada nota de sua flauta seresteira.
Salve Pixinga, tocador de flauta como ninguém.
Anjo bom de azas azuis, o pássaro brasileiro mais lindo que já ouvi cantar."
João Dias Carrasqueira
Sobre a força da música de Pixinguinha :
No segundo semestre de 1996, participei da "I Convention Française de la Flute", em St. Maur, na França. Um dos concertos desse evento foi dedicado a meu professor Roger Bourdin, falecido 20 anos antes. Nessa ocasião, estavam presentes alguns dos mais importantes flautistas da atualidade, como Jean Pierre Rampal, Michel Debost e András Adorjan. Partindo de uma situação adversa, recebi uma ovação inesquecível, que me mostrou o grande poder da música brasileira.
Explico: havia sido combinado que eu tocaria a "Bachianas Brasileiras Nº 6", de H. Villa-Lobos, para flauta e fagote, e a "Sonatina", para flauta e piano, de M. Camargo Guarnieri. Chegando à França, um dia antes do início dos concertos me foi dito que não havia fagotista nem pianista disponíveis. Assim, que eu tocasse alguma coisa para flauta solo. Ora, eu tocaria dentro de três dias, a responsabilidade era imensa e tinha consciência de estar representando um país. Há anos não tocava na Europa, o público era todo de músicos e os programas eram constituídos por excelentes peças. Quase me desesperei.
Lembrei-me, então, de recorrer a um velho amigo dos anos de 1970, o violonista e percussionista Celinho Barros, que permanecera em Paris e construíra uma bela carreira. Assim, convidei-o para tocar comigo. Felizmente, ele estava disponível, gostou da idéia e me socorreu. Como Roger Bourdin amava a música popular brasileira, pensei em abrir minha participação tocando o "Improviso" para flauta solo de Osvaldo Lacerda e, em seguida, os choros "Pedacinhos de Céu", de Waldir Azevedo, e "Um a Zero", de Pixinguinha. Após a peça de O. Lacerda, como é de meu feitio, dirigi a palavra ao público. Falei do grande mestre e amigo que fora R.Bourdin e de seu amor pela música brasileira. O "Um a Zero", tocamos só com flauta e pandeiro. Quando terminamos, a platéia delirava, toda de pé, os aplausos explodiram e só terminaram quando voltei - pela quarta ou quinta vez - ao palco, desta vez sem a flauta, sinal de que não tocaria mais, a pedido do organizador, preocupado com o adiantado da hora, e o concerto seguiria então com outros músicos.
Na esteira de Pixinguinha, na linguagem do choro, vieram outros craques, como Benedito Lacerda, Dante Santoro, Altamiro Carrilho, Copinha, Carlos Poyares, todos excelentes flautistas que, vivendo no Rio de Janeiro, tiveram a oportunidade de gravar e estar na ribalta.
Em outros estados brasileiros houve e há grandes flautistas que não chegaram a gravar mas foram, certamente, muito importantes em seus locais de atuação, inspirando e passando sua arte para as novas gerações. Conheço apenas parte desta história, mas sei de Plauto Cruz, no Rio Grande do Sul, e de Expedito Vianna, em Belo Horizonte, este com certeza um excelente professor, pois conheço alguns de seus alunos, todos grandes flautistas, como Maurício Freire, Artur Andrés, Raul Costa D’Ávila, Antonio Carlos Guimarães e Fernando Pacífico, entre outros.
Em São Paulo, tivemos, entre outros, Vicente de Lima, Mauro Silva, José Maria Dias, Attilio Grani, Heráclito, Joãozinho Camargo, Omar Gonçalves, Manezinho da Flauta e o Canarinho da Lapa, João Dias Carrasqueira, meu mestre, sobre quem gosatria de tecer algumas palavras.
Virtuose, concertista, chorão, e grande pedagogo, João Dias Carrasqueira (1908-2000) se dizia autodidata. Tinha uma sonoridade linda e única, muito diferente da de seus pares do choro e das orquestras paulistas - Alfério Mignone, Ferruccio Arrivabene, G.Bortolim -, por quem tinha amizade e com quem frequentemente se reunia para executar duos de flautas de autores como F. Kuhlau e G. Galli. Em minha opinião, embora meu pai tivesse desenvolvido uma sonoridade absolutamente genuína, coisa de artista, resultado de muito trabalho e de uma concepção de som particular (e nesse sentido ele era, sim, autodidata), suas maiores influências flautísticas foram Pattápio Silva e Pixinguinha. Isso dá sentido à sua afirmação de que existe uma escola brasileira de flauta, opinião compartilhada pela mestra Odette Ernest Dias.
O que permite e causa o nascimento de uma escola? Intérpretes e repertório?
Altamiro Carrilho se inspirava em Benedito Lacerda que, por sua vez, era fã de Carrasqueira que, por sua vez, era grande admirador de Ary Ferreira…
Excelente intérprete de J. S. Bach, Mozart, Andersen, Schubert, Debussy, Bruno Maderna..., profundo conhecedor do repertório europeu, do período barroco à atualidade, J. D. Carrasqueira sempre devotou um grande amor à música brasileira, da mais tradicional e popular à mais erudita e inovadora. Intérprete da música de Pixinguinha, Callado, Nazareth, Villa Lobos, Camargo Guarnieri, Guerra Peixe, Teodoro Nogueira, Osvaldo Lacerda..., sempre incentivou, também, os novos compositores. Foi companheiro de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Garoto, Zequinha de Abreu...
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Estamos falando da flauta transversal moderna, mas não podemos esquecer dos pífanos, presentes sobretudo nos estados do nordeste brasileiro - Pernambuco, Ceará, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe e Bahia - onde nasceram e vivem as bandas de pife, formadas por dois pífanos e percussão. Temos, então, que citar e homenagear a famosa Banda de Pífanos de Caruaru, dos irmãos Biano; a Banda Cabaçal, dos irmãos Aniceto, do Ceará; Seu João do Pife, da Banda Cultural de Pífanos de Caruaru, e todas as menos conhecidas, mas não menos importantes. Bandas que que animam as festas, trazendo a música e a alegria para todos os vilarejos e rincões mais longínquos.
Inspirado na arte destes mestres populares, o excelente flautista, saxofonista, compositor e tocador de pife Carlos Malta, discípulo de Hermeto Pascoal, cujo grupo integrou durante muitos anos, criou, no Rio de Janeiro, o "Pife Muderno", grupo em que tem, como parceiros, a flautista Andrea Ernest Dias e os percussionistas Oscar Bolão e Marcos Suzano.
Hermeto Pascoal, por sua vez, é um artista extraordinário, enorme, sobre quem também se poderia escrever muito. Começando como sanfoneiro, tornou-se um mestre em vários instrumentos, inclusive a flauta. Dono de uma criatividade e liberdade impressionantes, o "Campeão" inovou não somente nas sonoridades da flauta, mas ampliou o universo sonoro e musical de todos aqueles que já tiveram o privilégio de ouvi-lo.
Caí no choro
A respeito da arte de Manezinho da Flauta, e seu impacto sobre mim, aí vai uma história.
Na década de 1970, vivendo em Paris, fui a um jantar na casa de uns amigos brasileiros. Lá pelas tantas, puseram um disco, lançado pela gravadora Marcus Pereira, "Brasil Seresta". Aquele som bonito, choros e valsas. A uma certa altura, ouço um som de flauta bonito, macio, expressivo, cantando…De repente, não aguentei, caí num pranto que surpreendeu meus amigos. A contracapa do disco dizia, apenas, que aquele era o Regional do Evandro, mas não citava os nomes dos músicos. Assim, fiquei sem saber quem era aquele flautista que me emocionara tanto.
Anos mais tarde, de volta ao Brasil, em São Paulo, vou ao clube do choro. No grupo da casa, um senhor magrinho, de idade avançada, carapinha branca, era o flautista. Quando ele começou a tocar aquele som lindo, especial, fui pego de novo pela emoção, vieram as lágrimas e reconheci no ato aquele flautista que ouvira no disco em Paris. Mais tarde, apresentando-me a ele soube seu nome: Manoel Gomes, ou Manezinho da Flauta.
Ficamos bons amigos, “seu” Mané tinha uma característica singular. Como tinha perdido os dentes, e não conseguia tocar com a dentadura, tocava sem dentes. Aí, desenvolveu uma sonoridade toda especial, suave, que me encantava a cada vez. Além disso, era capaz de tocar uma mesma música em vários tons, qualidade rara entre os flautistas, mesmo entre os chorões.
Os flautistas brasileiros que maior influência tiveram em minha geração foram Odette Ernest Dias, João Dias Carrasqueira e Altamiro Carrilho. Cada qual, a sua maneira, infuenciou muita gente.
Altamiro Carrilho é certamente o flautista brasileiro mais popular, mais conhecido das últimas décadas. Virtuose, com um trabalho dedicado essencialmente ao choro, é um excelente compositor e também participou de dezenas de gravações ao lado de compositores e cantores como Cartola e Roberto Silva, entre muitos outros. Gravou dezenas de discos e marcou presença nas rádios e TVs. Apesar de não dar aulas, influenciou flautistas do Brasil inteiro.
Odette Ernest Dias e João Dias Carrasqueira gravaram muito menos. Carrasqueira tem somente um CD solo, gravado quando já tinha 77 anos. Ambos grandes artistas, intérpretes e pedagogos muito atuantes, generosos, com uma ampla visão da música e do mundo e com uma larga experiência, também, com a música erudita, formaram um número muito grande de alunos, que vêm atuando tanto no campo da música erudita como na popular, ou em ambas.
O Brasil tem, hoje, um número muito grande de excelentes flautistas, devido ao ensino de vários mestres dedicados e altamente qualificados em diversas cidades brasileiras, sobretudo nas capitais. Certamente há outros mestres, mas os que me vêm à memória são:
- em São Paulo, Jean Noel Sagaard, Rogerio Wolf, José Ananias e Wilson Duarte Rezende, entre outros;
- em Tatuí (SP), Edson Beltrame, Juliano Arruda Campos, Paulo Flores;
- no Rio de Janeiro, Laura Ronái, Celso Woltzenlogel, Marcelo Bonfim, Sérgio Barrenechea;
- em Curitiba, Norton Morozowicks, Giampero, Sebastião Interland Jr., Zélia Brandão; - em Salvador, Lucas Robato, Helena Rodrigues;
- em Belo Horizonte, Artur Andrés, Maurício Freire, Mauro Rodrigues, Beto Sampaio, Fernando Pacífico;
- em Porto Alegre, Arthur Elias, Zacaria Valiati;
- em Recife, Rogério Accioli, Conceição Benck;
- em Brasília, Beth Ernest Dias, Sérgio Morais, Ariadne Paixão, Beatriz Magalhães, Sidney Maia.
Todos ele, entre muitos outros professores.
Cada vez mais amiúde flautistas de várias partes do mundo se apresentam pelo Brasil e, não raro, ministram "masterclasses", como Aurele Nicolet, Felix Rengle, Michel Bellavance, Emannuel Pahud, Wendy Rolfe, Claudio Barile, Rafaelle Trevisani e Brooks de Wetter Smith, entre outros.
Assim, os flautistas brasileiros, que hoje possuem flautas excelentes - embora ainda não tenhamos flautas modernas de boa qualidade produzidas no Brasil - estão absolutamente atualizados em relação a todas as evoluções técnicas e expressivas do mundo da flauta. A maior parte desses professores toca e ensina um repertório europeu, de tradição erudita, mas vários de seus alunos dedicam-se à música popular, trazendo assim toda essa evolução para seu campo.
Além dos já nomeados, cito aqui alguns dos flautistas brasileiros da atualidade cuja arte admiro. Certamente existem outros, muito bons, cujos nomes não me vêm agora à memória, ou que ainda não tive a oportunidade de conhecer.
Álvaro Carrilho, Alexandre Maionese, Bebeto, Beth Ernest Dias, Carlos Rato, Celine das Choronas, Celso Woltzenlogel, Cezar Michiles, Charles da Flauta, Daniel Allain, Danilo Caymmi, David Gang, Davson de Souza, Dirceu Leite, Dolores Tomé, Edmilson do Pífano, Eduardo Neves, Eliane Salek, Eliza Goritsky, Faninho, Fernando Brandão, Fernando Pintassilgo, Franklin Correa, Gabriel Swartz, Helena Rodrigues, Heriberto Porto, Humberto Araújo, Higildo, João do Pife, João Poleto, José Benedito, Kátia Pierre, Kim Ribeiro, Léa Freire, Leandro "Tigrão", Lena Horta, Lenir Siqueira, Leonardo Miranda, Mauro Rodrigues, Maicyra Trevisan, Marcia Licati, Maria de Lourdes, Mané Silveira, Maninho, Marcelo Bernardes, Marco Antonio Cancelo, Mário Sève, Marta Ozzetti, Mauro Senise, Murilo Barquete, Naomi Kumamoto – japonesa ! -, Nivaldo Souza, Nivaldo Ornelas, Paulo Bento, Paulo Guimarães, Paulo Magno, Paulo Teles, Raul Costa D'Ávila, Renato Camargo, Roberto Sion, Rodrigo Y Castro, Rogério Accioli, Sando Johnson, "Seu" Sebastião Biano, Sérgio Morais, Sidnei Maia, Tayrone Mandeli, Teco Cardoso, Toninho Liga-tripa, Ubaldo Versolato, Vinícius Dorin, Walter Lacerda e Zé da Flauta.
A Associação Brasileira de Flautistas, fundada pelo flautista Celso Woltzenlogel, tem hoje 540 afiliados. Felizmente, muitos e excelentes flautistas continuam a brilhar como estrelas e a cantar feito passarinhos pelas nossas matas, espalhados por todo o território brasileiro.
Parafraseando o poeta Mário Quintana, eu diria que os donos da mídia passarão e nossos flautistas passsarinhos.
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"Noventa anos do Canarinho da Lapa
Neste circo de horrores em que vivemos, onde seres humanos queimam florestas, sequestram, estupram, passam seu semelhante pra trás, matam por motivos étnicos, religiosos, políticos ou esportivos, somos às vêzes surpreendidos. O agente dessa barbárie permite em raros momentos que venha ao mundo alguém que nada tem a ver com isso, diríamos um verdadeiro santo.
E se você quizer conhecer um, não precisa viajar à Itália, à Idade Média ou folhear a Bíblia. É só passear ali perto da Rua Albion, na Lapa, e aguçar seus sentidos. Lá você vai ouvir a sonoridade de uma flauta encantada, que veio ao mundo para trazer o belo, a paz e a solidariedade. Lá você vai conhecer a figura sublime de João Dias Carrasqueira. Não pense que vai encontrar um ingênuo peregrino que circula pelo mundo distribuindo gratuitamente obviedades do tipo "ah, como seria bom se o homem fosse assim ou assado, se fizesse isso ou aquilo...". Engana-se. A visão humanista de João Dias tem conteúdo, é prática, concreta, como a demonstrou por todos os seus belíssimos anos de vida. Os espaços por onde circulou, ou seu reduto doméstico, repleto de amigos, músicos e alunos, sempre receberam a força de uma poderosa energia vital otimista e humanitária, efetivamente transformadora.
Conviver com João Dias é se tornar um ser humano melhor. Não pense também que sua flauta é um mero adorno complementar que torna seus relacionamentos apenas mais "simpáticos". Não. João Dias é um flautista monumental, seu instrumento é a própria prolongação de seu corpo e de seu espírito e sua música é feiticeira. Oriundo de um Brasil mais modesto e autêntico, humano e honesto, sem a atual paranóia primeiro-mundista de 8a. economia do mundo, mas com a pior distribuição de renda do planeta, João Dias vem do rico convívio das serestas e das velhas rádios brasileiras, repletas de gênios como Pixinguinha, Garoto, Zequinha de Abreu, Canhoto, Catulo da Paixão Cearense, Marcelo Tupinambá, Paraguassu e tantas outras figuras iluminadas de quem foi amigo e companheiro de aventuras sonoras. Destacou-se de todos, porém, por incríveis disciplina e capacidade de domínio artesanal que o fizeram um instrumentista maior, digno de ganhar o primeiro lugar de flautista da Orquestra Filarmônica de São Paulo ou de ser convidado pelo compositor Camargo Guarnieri para interpretar adequadamente suas peças para flauta.
Circulando com facilidade entre a flauta Mozartiana e a flauta brejeira, da qual foi um dos inventores, João Dias sabe muito bem a diferença de linguagens e pronúncia entre elas, fazendo tudo com maestria e dignidade. Essa riqueza humana e esse talento autodidata fora do comum possuem, curiosamente, um reflexo sobre sua própria personalidade, auto alimentando-se por tal energia. João Dias chega agora aos 90 anos com o frescor espiritual e a vontade transformadora de um adolescente. Só nos resta tentar imitá-lo e afirmar com ênfase: Feliz país que possui um personagem dessa grandeza!"
Júlio Medaglia
"JOÃO DIAS CARRASQUEIRA, 90 anos
Artista de horizontes amplos, mente aberta... grande, imenso, sábio, por isso mesmo simples, tranqüilo, sem nenhuma espécie de estrelismo.
Concertista e "Chorão", dono de amplo repertório, que organizava em recitais sempre muito interessantes e agradáveis, conquistando as mais diferentes platéias, obtendo sempre muito sucesso. Criativo, improvisador, parceiro de Pixinguinha em temporadas na rádio Record e de Jacob do Bandolim em memoráveis saraus lá em casa, meu pai impressionava a todos pela beleza, expressividade, verdadeira magia de seu som absolutamente único de flauta. Um grande artista, carismático, bem humorado, com grande presença de palco e excelente comunicação com a platéia. Fez muito pela flauta. Aí vai um pouco de sua história:
Nascido em Paranapiacaba, no coração da mata Atlântica, teve uma infância privilegiada, banhando-se nos rios e cachoeiras, no mesmo habitat das lontras, onças pintadas, mico-leões dourados, cobras corais. Cresceu encantado com a mata, cipós, flores, borboletas e pássaros. Esse encanto marcaria sua arte para sempre. Ainda menino fazia suas flautinhas de bambu para conversar com os passarinhos. Numa família de 6 irmãos quase todos tocavam algum instrumento. José Maria, o mais velho, excelente flautista, lhe ensinou a tocar a flauta transversal.
Aos 8 anos de idade, com a morte do pai, Antônio Dias Carrasqueira, maquinista da São Paulo Railway e mestre da banda Lira da Serra, a família mudou-se para São Paulo, bairro da Lapa, e todos os irmãos foram trabalhar na Ferrovia. (bons tempos aqueles em que existiam bons trens no Brasil...).
Joãozinho, além do talento musical e da inteligência incomum, também se iniciava na arte da pintura, frequentando a Escola de Belas Artes e trabalhando como aprendiz dos mestres italianos de então.
Na Lapa, cresceu músico, seresteiro, compositor, flautista, violonista, pintor, ator, poeta. Arrimo de uma grande família desde os 13 anos de idade, começou a tocar profissionalmente em orquestras de cinema e, a partr da década de 1930, em emissoras de rádio. Formou-se professor de flauta pelo Conservatório Sta. Cecília, em São Paulo.
De 1933 a 1936, atuou em conjuntos regionais e orquestras de várias emissoras. Em 1939, na Rádio Record, integrou a orquestra e o regional de Armandinho, sob o cognome de Canarinho da Lapa. Em 1954, ganhou o concurso do IV Centenário para solista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Em 1962, recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos Teatrais, como o melhor instrumentista do ano, pela apresentação, ocorrida pela primeira vez no Brasil, do ciclo integral das sonatas para flautas e cravo de J. S. Bach, ao lado da cravista Alda Holnagel. Em 1965, apresenta, ao lado do autor, a obra de Camargo Guarnieri para flauta. Compôs algumas peças para trilhas sonoras de televisão. Foi flautista da Orquestra Sinfônica Municipal e da Orquestra Filarmônica de São Paulo
Figura muito querida, solidária, sempre muito atuante, organizou exposições de pinturas, criou, dirigiu e atuou em "sketches" teatrais, apresentando-se com grupos de atores, músicos, poetas, em teatros, escolas, salões paroquiais e asilos, levando, sempre com muito bom humor, uma mensagem de fraternidade. Humanista e artista de várias e brilhantes facetas, colocou sempre seu trabalho e sua arte a serviço da coletividade e do bem comum.
A partir de 1964, aposenta-se na Ferrovia e passa a se dedicar principalmente a seu trabalho de concertista e professor. Como solista ou camerista, apresenta-se em centenas de recitais e concertos, mostrando um repertório extenso e então praticamente desconhecido do grande público. Um grande virtuose, intérprete inspirado de W. A. Mozart, C. Debussy, Pattápio Silva, Dopller, Popp, Terschak, Andersen, Kuhlau..., Carrasqueira sempre incentivou os novos compositores brasileiros, sendo também responsável por várias primeiras audições brasileiras e mundiais de peças de compositores como Bruno Maderna, Malipiero, T. Nogueira, P. Hindemith...
Admirado e querido por todos que o conheceram, sua flauta sempre teve uma sonoridade única, admirada por uma legião de fans e companheiros diversos, como Benedito Lacerda, Zequinha de Abreu, Garoto, e os maestros Leon Kaniefsky, Simon Blech e Eleazar de Carvalho, entre tantos outros artistas, dos meios populares e ou eruditos. Pintor premiado, seus quadros se inspiram quase sempre em cenas do país que sempre amou, em paisagens da mata, que pintava de memória, com suas sutis contraposições de luz e sombra. Óleos e aquarelas foram sempre presenteadas aos amigos e parentes .
Professor generoso e devotado, é considerado o grande responsável pelo renascimento da flauta em São Paulo, e o criador de uma escola brasileira de flauta. Apaixonadamente brasileiro, criou um método de ensino baseado na música brasileira e costumava compor, carinhosamente para cada aluno , músicas exclusivas, criadas durante as aulas.
Mestre de várias gerações de flautistas, como Ricardo Kanji, Edson Beltrame e centenas de outros craques espalhados pelo Brasil e por vários países, seus alunos nutrem por ele uma verdadeira veneração, agradecidos pelo convívio e pelas importantes lições de vida. Em sua “ Flautosofia “ dizia que a música unia os homens e os religava a Deus.
Antonio Carlos Carrasqueira
Flauta Brasileira...
…quando eu morrer, não quero flores, nem coroa de espinho, quero ouvir flauta, violão e cavaquinho… Noel Rosa
As flautas têm acompanhado o homem desde o princípio de sua história. Feitas de ossos, madeiras, metais, todos os povos têm se comunicado através deste que é, no dizer do compositor francês André Jolivet, “ o instrumento musical por excelência, pois é animado pelo sopro, emanação profunda do homem e carrega em seus sons aquilo que nos é, ao mesmo tempo, visceral e cósmico”.
Também os homens do continente americano vêm, ao longo dos tempos, se expressando ao som de suas Quenas, Sampoñas, Pífanos de bambu, Ocarinas de argila, bem como de suas modernas flautas de ouro e prata, que são herdeiras, descendentes de todas as primeiras flautas. Seu universo cultural, extremamente rico, é, na imagem do Prof. Alfredo Bosi, “um coro onde as vozes da Europa, da África e da Ásia se fundem, ora harmônica, ora estridentemente, com os cantos, ainda não abafados dos povos pré-colombianos”. O vigor de sua arte impressiona a todos os que têm o privilégio de com ela travar conhecimento.
As flautas estão presentes desde tempos imemoriais em praticamente todas as culturas do planeta, incluindo aquelas dos diferentes povos indígenas, africanos e europeus, matrizes recentes do atual povo brasileiro.
Diferentes mitologias se referem a Deuses flautistas, Pan, Krishna, Kokopeli…divindades sedutoras, que têm o dom de transportar as almas com o som de suas flautas.
No Brasil...terra boa e gostosa... terra de grandes músicos, e de excelentes flautistas, de norte ao sul do país, vemos virtuoses, seresteiros, chorões, “jazzistas”, “concertistas”, roqueiros, sambistas, mestres e aprendizes desse instrumento, presente, [desde os mais remotos tempos de nossa história], na música de nossa gente. Muitos desses artistas permanecem desconhecidos do grande público, outros têm condições de aparecer mais e mostrar sua arte, mas o fato é que sempre houve grandes flautistas e, sobretudo, atuantes na história da música brasileira.
Callado, Viriato, Reichert, Pattápio Silva, Pedro de Assis, Duque Estrada Meyer, Pixinguinha, Agenor Bens, Ary Ferreira, Benedito Lacerda, Vicente de Lima, Moacyr Licerra, Alferio Mignone, João Dias Carrasqueira, Manezinho da flauta, Bide, Dante Santoro, Eugênio Martins, Copinha, Carlos Poyares, Luiz Fernando Sieciechowicz, o “China”, Simone Castrillon], entre os que já se foram, e Andréa, Beth e Odette Ernest Dias, Altamiro Carrilho, Antonio Rocha, Hermeto Paschoal, Celso Woltzenlogel, Rogério Wolf, Lucas Robatto, Marcelo Bonfim, Renato Axelrud, Ricardo Kanji, Marcelo Barboza, Mauricio Freire, Toninho Guimarães, Artur Andrés, Artur Elias, Beatriz Magalhães, Edson Beltrame, Heriberto Porto, Cassia Carrascoza, Fernando Pacífico, Daniel Allain, Franklin da Flauta, Lenir Siqueira, Marcelo Bernardes, Mauro Senise, Ariadne Paixão, Mauro Rodrigues, Marcos Kiehl, Dirceu Leite, Lea Freire, Norton Morozowicz, Teco Cardoso, Tota Portela, Sergio Barrenechea, Nivaldo de Souza, Davson de Souza, José Benedito Viana Gomes, Alexandre Johnson, Eduardo Neves, Raul Costa d’Avila, Laura Rónai, Tyrone Mandelli e Rodrigo Y Castro, entre outros bons, são algumas das estrelas desta verdadeira constelação.
Pois tenho o privilégio de ser filho de um dos maiores mestres da história da flauta no Brasil: João Dias Carrasqueira, o Canarinho da Lapa, que sintetizava como poucos, as duas principais vertentes da moderna flauta brasileira; a nobre flauta concertista, das orquestras sinfônicas, da música de câmara, dos salões, teatros e salas de concerto; e a não menos nobre flauta popular, buliçosa, irreverente, cheia da ginga e malícia das ruas, serestas, bailes e botequins.
Inspirado na magia de sua flauta, que me fez ser também flautista, gravei, em 1996, quando me desliguei da Orquestra Jazz-Sinfônica de São Paulo, um CD com músicas de Pattápio Silva e de Pixinguinha. Por essa época a música de Pattápio andava muito esquecida e a de Pixinguinha pouco tocava no rádio. Nesse disco eu pretendia também, através da música destes dois grandes mestres da flauta brasileira, render uma homenagem à história da flauta no Brasil, que apesar de riquíssima, era, porém, desconhecida inclusive pela maioria de nossos estudantes de flauta.
Hoje, felizmente, graças a vários trabalhos, esse desconhecimento pela parte de nossos estudantes é menor. Não obstante, fato gravíssimo, muitos brasileiros nunca viram uma flauta, ou um clarinete, graças às limitações da programação das televisões e rádios brasileiras, ainda que haja raras exceções.
Alguns anos depois, mais precisamente em 2001, a convite do violonista e compositor Mauricio Carrilho, tive a felicidade de participar, ao lado de grandes músicos, da gravação de uma série de CDs que fazem parte de uma coleção chamada “Princípios do Choro”.
Fruto da pesquisa de Mauricio e de sua esposa, a violonista Anna Paes, essa preciosa coleção revela um momento que era, até então, um verdadeiro “elo perdido” da história da música brasileira. Aí foi minha vez de me surpreender com o grande número de flautistas, em sua maioria também compositores, e com a enorme popularidade da flauta no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Esta revelação atiçou ainda mais minha curiosidade sobre a história da flauta no Brasil.
De onde surgiram tantos flautistas, como tudo começou?
Ary Vasconcelos, em seu livro Raizes da Música Popular Brasileira, diz: “O relógio da música popular brasileira dispara, teoricamente, uma terça-feira, dia 22 de abril de 1500 […] quando os portugueses por aqui chegaram, a música foi parte importantíssima no processo de colonização. Os jesuítas trouxeram em sua bagagem a tradição musical européia, que iria resultar no sistema tonal. […] tudo teria sido certamente bem mais difícil para os padres se os índios fossem menos sensíveis à música. Por sorte do jesuitas, eles adoravam-na”.
O Pe. Simão de Vasconcelos confirma isso: “São afeiçoadíssimos à música; e os que são escolhidos para cantores da Igreja, prezam-se muito do ofício e gastam os dias e as noites em aprender e ensinar outros. Saem destros em todos os instrumentos músicais; charamelas, flautas, trombetas, baixões, cornetas e fagotes : com eles beneficiam em canto de órgão, vésperas, completas, missas, procissões, tão solenes como os portugueses” – Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, Livro Segundo, 2a. ed.
Não é difícil deduzir que já se tocavam flautas no Brasil mesmo antes da chegada dos portugueses. Para os povos indígenas a música sempre foi ritual, uma forma de se comunicar com o divino, e as flautas, instrumentos encantatórios, sagrados. Assim é até hoje, para as nações que sobreviveram aos massacres promovidos pelos colonizadores. Eu mesmo já tive o privilégio de ouvir uma dupla de flautistas guaranis, mulheres, com suas flautas de caniços verticais de bambu.
Em algumas nações indígenas outras flautas, com timbres diferenciados, tem distintas funções, e somente aos homens é permitido tocá-las. Assim, reiterando que já foi mencionado, como vemos, as flautas, no Brasil, estão presentes desde o início de nossa história.
Ainda Ary Vasconcelos em seu Raizes da Música Popular Brasileira declara: “Imensa é a riqueza instrumental do índio brasileiro, com predominância em duas categorias, percussão e sopro […] também nas flautas, - isto é, os instrumentos formados por tubos de taquara, madeira ou osso, abertos em uma ou em ambas as extremidades – os índios se mostram muito criativos. Todas elas são providas de orifícios – seis, no máximo, no Brasil - e podem ser retas ou transversais . O material empregado é o bambu, a madeira, a paxiúba, o osso […] a flauta nasal […] pode ter os aspecto de flauta comum, reta, ou arredondada, quando formada por dois discos de cabaça, presos por cera. Reunindo duas ou mais cânulas, ou dois e mais tubos, temos as flautas conjugadas, duplas, tríplices e as de Pã ou “syrinx”,desta já tendo sido encontrados exemplares, em diversas tribos brasileiras, de até 25 tubos[…].
[…] ao índio brasileiro tudo tem sido negado, até mesmo o direito de viver a sua própria cultura, falar a sua própria língua. Tido por muitos como incapaz, entretanto quanto mais é estudado, mais revela sua verdadeira e forte personalidade, mais se afirma como um criador de talento”.
Mas não foram somente os índios os beneficiados com o ensino de música promovido pelos jesuítas. Na fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, a tal requinte chegou esse ensino que os africanos e seus filhos e netos, então escravizados, formavam orquestra e corais, chegando a representar pequenas óperas e a dar conta da parte musical dos ofícios sagrados.
Sabe-se, como cita José Ramos Tinhorão, em sua História da Música Popular no Brasil, que muitos fazendeiros tinham bandas musicais formadas por escravos. Essas bandas encantaram a Família Real Portuguesa, quando se transladou para o Brasil em 1808.
Portanto, está assim explicada a popularidade da flauta no Brasil. Aliás, temos aí uma [plausível e possível] explicação para a tão propalada musicalidade do povo brasileiro, seu gosto pela música, e como ela se entranhou em nossos genes. Musicalidade, que a meu ver, está sendo enormemente prejudicada na atualidade e desde algumas décadas, com o enorme poder de influência adquirido pela televisão e pelas rádios.
Por causa de um sistema econômico que permite gravadoras decidir a programação desses meios de comunicação, o repertório musical apresentado [ao público] é extremamente limitado, não representando nem 7% da produção musical brasileira contemporânea, segundo tese defendida recentemente na Universidade de São Paulo, pela compositora Sylvia de Lucca. Como se não bastasse, esta programação tem um nível medíocre. A ação dessas radios e TVs, em meu entender, tem um efeito extrememente nefasto, não permitindo que as novas gerações tenham acesso não somente à música de grande qualidade feita pelas gerações anteriores, como à boa música feita por seus contemporâneos.
Feito este parênteses, voltemos à nossa história...
As famosas orquestras mineiras do século XVIII, como as remanescentes Lira Sanjoanense e Orquestra Ribeiro Bastos, de São João Del Rey, contavam com flautistas, certamente, como deduz-se pela orquestração utilizada pelos compositores brasileiros de então, como Lobo de Mesquita e Manuel Dias de Oliveira. [Toninho Guimarães ou Salomé Viegas são, a meu ver, os mais indicados para lhe passar detalhes e nomes dos flautistas]
Pode-se dizer que a história moderna da flauta brasileira, começa com Joaquim Antonio da Silva Callado Jr. ( 1848-1880 ) embora, como já foi dito, já houvesse muitos flautistas antes dele, incluindo-se aí o próprio imperador Pedro de Alcântara, Dom Pedro I. Outro nome importante, foi Matheus André Reichert (1830/1880), flautista belga que chegou ao Brasil em 1859 para integrar o grupo de virtuoses que o Imperador, D. Pedro II, mandou contratar na Europa.
De Callado até hoje, no choro, nas serestas, nas orquestras de cinema, bandas e orquestras sinfônicas, nos grupos de jazz, rock, ao longo dos tempos e nos diferentes estilos, os flautistas vêm participando de forma muito importante da história da música no Brasil.
Além dos virtuoses já citados, há outros criadores, como Tom Jobim, Tim Maia, Egberto Gismonti, que mesmo sem tê-la como instrumento principal, também gostavam e gostam de tocá-la. Fazem parte de uma tradição muito rica, onde cada flautista tem um som diferente, original, de características próprias, assim como o canto do canarinho é diferente do canto do curió e do sabiá laranjeira….
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